Manari se livra de pior IDH, mas não da miséria
Angela Lacerda, de O Estado de S. Paulo
18 de junho de 2011 | 18h 50
MANARI - Ana Paula da Conceição, o marido João José dos Anjos, e os filhos Natália, Roberto e Luzimara - de seis, cinco e três anos - ainda não haviam comido nada. Luana da Conceição, de três meses, era a única que já havia se servido do peito magro da mãe. Num tosco fogão a lenha, no terreiro atrás da casa de piso de terra, Ana cozinhava feijão puro - doação de um vizinho que serviria de alimento para o dia.
"Ontem só tomei café", contou ela, analfabeta, encabulada, sem saber dizer a própria idade. Eles moram no sítio Bebedouro, área rural de Manari, município que ficou famoso nacionalmente no início da década passada por ter o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do País. Desde então, alvo de programas governamentais, Manari não mais detém o incômodo título. Mas a miséria persiste.
Ana não recebe Bolsa Família. "A gente tenta há quatro anos", diz João José, 27 anos, que trabalha na roça, como a maioria dos 18.038 habitantes do município. Planta feijão e milho "na terra dos outros" e fica com metade. Nem sempre a produção dá para o sustento. "Dá desgosto", diz.
Maria da Paz da Conceição, 48 anos, cinco filhos, sorri com a boca meio fechada para esconder os "caquinhos" de dente que lhe restam. Ela nunca foi a um dentista. O marido, Ivanildo Mangueira da Silva, também luta na terra pela sobrevivência e não se preocupa com o fato de o filho de 11 anos não saber ler, embora frequente a escola municipal, onde faz a terceira série. "A caneta dele é a enxada", minimiza, ao lembrar que o menino o ajuda e já sabe manejar o instrumento de trabalho.
Município sem saneamento básico, banheiro é artigo de luxo em Manari, a 380 quilômetros de Recife. Na zona rural, ninguém parece sentir falta de sanitário e papel higiênico. No Sítio Bebedouro, onde se localiza um lixão a céu aberto, a falta de higiene fica mais visível: moscas e ratos costumam dividir espaço nas casas, cujo mobiliário se resume basicamente a camas velhas.
Ficar doente e não ter assistência nem como se comunicar. Ir para a escola e não ter merenda nem livros. Receber treinamento de manejo de galinhas ou de apicultura e não ir adiante por falta de recursos. Ter água no subsolo e não poder explorar. "Isso também é miséria", afirma José Limeira, 40 anos. Líder comunitário dos sítios Carnaúba, Umbuzeiro e Aguada, que reúne 84 famílias.
Josefa Cícera da Silva, 24 anos, com filhos de três, quatro e cinco anos, conta que as duas crianças mais velhas andam cerca de três quilômetros para ir à escola municipal. Ela nunca fez um exame pré-natal na vida. Por conta da casa sem reboco, diz que os filhos estão sempre "doentinhos".
Fracasso. Cícero Francisco da Silva, 51 anos, é professor da escola municipal do Umbuzeiro, que tem 55 alunos. Conta apenas com o manual do professor e escreve a matéria das várias séries para as crianças copiarem, já que só dispõem de caderno e lápis. A merenda, segundo ele, é suficiente para oito dias. No restante do mês, não há lanche. Afirma contar nos dedos os alunos que ensinou ao longo de quase três décadas que conseguiram superar a linha da miséria. "É um fracasso", afirma.
Em 2000, a renda média de Manari era de R$ 41,14. Dez anos depois, atingiu R$ 210,44.
O comércio, ainda fraco, cresce e começa a sair da informalidade. O número de famílias beneficiadas com o Bolsa Família chega a 3.025. O acesso à cidade foi asfaltado.
"Não somos mais o que éramos", diz, otimista, o vereador Cícero de Oliveira Santos (PSB). Cita melhoria da autoestima do povo e geração de oportunidades para as famílias de Manari - uma cidade que não oferece atrativos ou desperta encanto em quem nela chega. Seu prefeito, Otaviano Martins (PSDB), não mora lá nem dá expediente na prefeitura. O Estado tentou contato com ele, por telefone, sem sucesso.
FONTE: O ESTADÃO
A JORNADA
“O que tem
que mudar no Brasil para a sua vida dar uma melhorada?”
20 de Novembro 2008
Nós
(Alexandre Apsan Frediani e Gustavo Pellizzon) fomos contratados pela PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) para irmos aos 10
municípios de menores IDH do Brasil e buscar respostas para essa pergunta.
A intenção
da pesquisa é buscar opiniões e perspectivas das populações mais excluídas do
Brasil para informar a escolha do tema para o próximo relatório sobre
Desenvolvimento Humano da PNUD no Brasil.
Nossas
atividades em campo almejam valorizar o ser humano, suas capacidades e
potencialidades. É a força, os sorrisos, a esperança, a solidariedade, as
invenções que as pessoas fazem para reinventar a vida mesmo em sua condição
mais sofrida.
Acordamos
às 6 para tomar um ótimo cafe da manhã. No caminho para Manari ligamos o radio
para nos distrair com as noticias matinais: Ele pegou a faca, esfaqueou o braço
da vítima, esfaqueou o peito da vitima, esfaqueou o pescoço da vitima, degolou
a cabeça de vitima. O delegado ou delegada Darcir Não sei das quantas encontrou
o corpo na noite do dia seguinte! A cabeça estava do lado do corpo… e o radio
chchchchchch, já era também… Graças a Deus! Até Manari a estrada estava boa, e
quando chegamos fomos direto a prefeitura, que é o primeiro prédio da cidade.
Após algumas conversas nos apresentaram ao Ricardo, professor e funcionário do
conselho tutelar, que foi o nosso guia nos próximos dois dias.
Nosso
primeiro tema de abordagem foi a feira, que estava acontecendo no centro da
cidade e deixando os sítios (povoados) vazios. Ali encontramos o inusitado
vendedor de remédios para próstata e outras mazelas com produtos naturais. Para
atrair consumidores, ele tinha um casal de cobras e um megafone. Ele
literalmente fazia a cobra subir! Um exemplo do cara que dá o seu jeito para
ganhar a vida no meio de tanta adversidade.
Ao
conversar com Fabiana do conselho tutelar, descobrimos que a prostituição
infantil é um grande problema do município. Fomos a uma casa onde pelo menos 4
garotas entre 7 a
10 anos tinham sido abusadas e elas deixavam em troca de balas, pipocas ou um
trocado. Foi uma conversa muito forte e difícil. Mas elas nos contaram com
alegria o sonho de ter uma bicicleta e saírem dessa situação. Foi muito bonito
ver o sorriso no rosto dessas garotas.
Seguimos
então para o sitio Queimadas. No entanto as condições da estrada não
aparentavam ser as mais apropriadas, por isso mudamos o roteiro para o Pé da
Serra. Após um mini rali sertanejo, tivemos que abandonar nosso moderno veiculo
com ar condicionado para seguirmos no agradável carro de boi. No Pé da Serra
encontramos famílias que vivem em condições de extrema necessidade: falta água,
terra, escola (professores não vem há dois meses), e a péssima estrada
dificulta qualquer contato com, o não muito distante, meio urbano. Foi um
desafio arrancar um sorriso do rosto dessas pessoas. Impressionante ver como a
vida sofrida dessas pessoas as fizeram aparentar pelo menos 15 anos a mais que
a propria idade. Já escuro, partimos pela mata para reencontrar nosso carro e
voltar para Garanhuns.
Logo cedo
do dia 21, encontramos Ricardo na casa paroquial onde ele prepara a festa da
padroeira. Antes de partirmos para a área rural do municipio fomos informados
que em Manari existe muita plantação de maconha de pequenos agricultores.
Queríamos saber mais dessa realidade,
mas os riscos para nós e para nossos contatos eram muito grandes. Decidimos
manter nosso plano original e seguir para Sitio das Baixas, conhecido e
estigmatizado como o lugar mais pobre da região. No caminho que nos levou pelo
sertão mais duro e seco, atolamos uma vez mas seguimos em frente.
Como já
tinhamos entrado em contato com uma liderança do local, a comunidade tinha se
reunido para nos encontrar pela manhã. Casas de taipa, muita criança, vegetação
tipica da catinga e imagens religiosas compunham o cenário do local.
Umas 20
pessoas participaram da atividade em grupo que identificou como principal
proposta a união para conseguir casas e água. Em seguida entrevistamos alguns
personagens: uma parteira que amava o seu plantio na serra; o morador mais
antigo que queria uma associação para lutar pelos seus direitos; um pai de uma
garota com necessidades especiais que achava que tinha que amar essa filha mais
que as outras por deus tê-la feito diferente; uma professora que ama suas
galinhas e cebolas. O lugar se mostrou o brasil em sua maior essência. Podíamos
nos remeter a musica Procissão do Gil: “Eles vivem penando aqui na terra,
esperando o que Jesus prometeu…”
Almoço não
podia ser mais típico: Bode assado e feijoada! Para terminar o dia
entrevistamos uma representante da Natura em Cercadinho, que fica no caminho de
Pé de Serra. O depoimento dela teve um tom bastante sentimental, propondo mais
amor para esse Brasil. Nos despedimos do agora amigo Ricardo com uma promessa:
ele ficou de produzir repentes e cordel com a criançada da escola municipal com
a pergunta: O que tem que mudar no Brasil para a sua vida dar uma melhorada.
REPORTAGEM
// Manari e os dias melhores
"Aqui
até o nada serve". Esta frase deu o tom final da reportagem que começou a
ser publicada ontem no Diario sobre a cidade de Manari. Quem disse a frase foi
a agricultora Teresa Maria dos Santos, de 54 anos. Uma mulher que construiu a
sua vida naquele município do Sertão, que só foi emancipado em 1997, fica a 318,4 quilômetros
do Recife e que não aparece em nenhuma das sinalizações da estrada. Um lugar
perdido, esquecido, imerso em miséria e condições de vida subumanas, que
parecia condenado a a ficar para sempre escondido por trás da poeira da areia
do único caminho que leva até a cidade.
No rastro
da poeira dos números levantados pelo censo demográfico do IBGE em 2000, Manari
apareceu da pior forma possível. No cruzamento de dados elaborado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 2004, a cidade apresentou o
mais baixo índice de desenvolvimento humano do país (0,467). Altíssimas taxas
de miséria, pobreza, analfabetismo e mortalidade infantil. Péssimos níveis de
acesso à saúde, à educação e ao saneamento básico. Uma esperança de vida de 55,7
anos.
Teresa
Maria está com 54. Mas a sua esperança de vida hoje, já não se mede. Esperança
é uma palavra que a agricultora cultivou a vida inteira, mas foram raras as
vezes que colheu os frutos. Uma vida simples. Sem chances de mudança:
"Nunca pude ir para a escola. Minha família toda vivia na enxada e eu
comecei a trabalhar na roça aos oito anos". Roça que garante a sua
sobrevivência até hoje. "Tudo o que planto é para alimentar a minha
família. Às vezes, dá pra sobrar uma coisinha...aí a gente vem vender na
feira", diz Teresa - que não revela quanto consegue receber nessas
pequenas vendas.
Depois de
minutos de conversa, começa a ficar um pouco mais fácil entender o que ela quis
dizer com "aqui até o nada serve". O "nada" de hoje,
simplesmente, é melhor que o "nada" de ontem. "Vivíamos morrendo
de sede aqui. Não tinha médico, remédios, nem escola. Sempre fomos pobres, mas
hoje a gente acorda sabendo que vai viver", diz. Sua vida mudou. Pouco, mas
mudou. Sua mãe tem 80 anos e uma saúde tranqüila. Viveu além da
"esperança" da cidade. Seus quatro filhos reescreveram a história da
família e aprenderam a escrever. Todos estão na escola. E Manari aprendeu a
lição.
Sombrinhas
São 13h de
uma terça-feira e o comércio está fechado na área urbana de Manari. E ficará
assim pelo menos até às 15h. Pela rua, poucas pessoas caminham embaixo das suas
sombrinhas para se proteger do sol. Aquele sol que se imagina de uma cidade do
Sertão. Nas sombras das árvores, homens conversam embaixo dos seus chapéus.
Passa um carro sem carroceria. Passa um porco. Dois homens estão quebrando o
calçamento. Na verdade, construindo um futuro que demorou demais para chegar.
Água encanada e saneamento básico. Dias melhores. Duas meninas com sombrinhas
cor de rosa e cadernos na mão conversam baixinho enquanto seguem para a escola.
Sorriem para a câmera.
Do outro
lado da rua, uma pequena casa de muro verde e azul. Porta e janela. Telhas
velhas. Na fachada, letras pretas e vermelhas avisam: AGÊNCIA DE VIAGENS.
MANARI A SÃO PAULO. Por muitos anos, ali estava a saída. A saída de Manari. Se
não a única, certamente a mais tentadora e, por isso mesmo, a mais comum. Todas
as quintas, parte o ônibus. Clandestino. A passagem é R$ 180,00. A viagem, se
tudo der certo, de dois dias. Conversando com as pessoas pelas ruas, é
praticamente impossível encontrar alguém que não tenha ao menos um familiar em São Paulo.
"Todas
as pessoas mais velhas têm família lá. Algumas bem estruturadas. A maioria, no
entanto, ainda passa muitas dificuldades", conta Rogério Silva, 25 anos e
comerciante na feira do município. Ele nunca teve um emprego com carteira
assinada. Na verdade, qualquer tipo de emprego - que não seja ligado à
Prefeitura - é algo praticamente inexistente ali. O pouco dinheiro que circula
no tímido comércio da cidade é quase todo proveniente das aposentadorias e do
funcionalismo público.
A condição
de Rogério é até uma exceção. Vende verduras na feira e consegue tirar até R$
350,00 por mês. Dinheiro suficiente para sustentar ainda a sua esposa e o filho
de um ano e seis meses. Milagres...necessidades de Manari. Rogério já foi uma
vez para São Paulo. Voltou e não tem planos para entrar de novo no ônibus das
quintas-feiras.
Ele ficou e
viu a cidade começar a mudar nos últimos dois anos. Debaixo dos seus pés, estão
sendo construídos o encanamento para a água e a estrutura para a implantação do
sistema de esgoto. Cisternas foram espalhadas pelos sítios na zona rural. A
água da chuva consegue ser reaproveitada. Serviços básicos que, nesse caso, têm
um significado muito maior. Falam em desenvolvimento. Pela
primeira vez, como se este fosse realmente possível. As duas escolas foram
reformadas. Os alunos agora podem completar o ensino médio sem ter que sair da
cidade. O hospital teve as instalações recuperadas e, o mais importante, todos
os dias, existe pelo menos um médico de plantão.
Desvio
"Sem a
água encanada e o saneamento, não tem nem como imaginar um empresário de fora
vir aqui, investir, montar uma fábrica, um hotel...", explica Lucas
Bezerra, 28 anos, assessor do prefeito Otaviano Martins - que mora na cidade
vizinha e quando está em Manari acaba atraindo uma pequena multidão para a
frente da Prefeitura. Pessoas que precisam e pedem ajuda. Dinheiro, cestas
básicas, remédios, materiais de construção. Otaviano costuma atendê-las. Um
desvio de função, é verdade. Mas um tanto compreensível para quem está ali.
"Depois
da cidade ter aparecido como a última colocada no IDH do país, os olhos das pessoas
se voltaram pra cá. Todos passaram a ajudar. Foi algo ruim que trouxe coisas
boas", resume Lucas - que, assim como toda a cidade, espera um futuro
melhor.
O
jornalismo às vezes tem uma lógica perversa. Vendo a miséria sumindo aos
poucos no retrovisor, fica a certeza de que, no próximo censo do IBGE, aquela
não será mais a cidade com pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil e
certamente, não estará mais na rota das equipes reportagens - que seguem ávidas
os rumos que as pesquisas e análises sociais revelam. Manari desaparece na
poeira.
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